Relativismo epistemológico, por Richard Feldman

Tradução de L. H. Marques Segundo

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Um conjunto final de questões sobre a Perspectiva Padrão emerge da consideração da Perspectiva Relativista. Assim como a Perspectiva Naturalista e ao contrário da Perspectiva Cética, a Perspectiva Relativista não sugere tanto que a Perspectiva Padrão seja falsa, mas antes que é incompleta e que não leva em conta considerações importantes. O ponto de partida da Perspectiva Relativista são as observações de que há grande diversidade cognitiva e que pessoas aparentemente razoáveis podem discordar substancialmente. A Perspectiva Padrão parece ignorar isso. Este capítulo examinará esses pontos e suas implicações.

FORMAS INCONTROVERSAS DE RELATIVISMO

Harvey Siegel (um crítico do relativismo) descreve o relativismo com se segue:

O relativismo epistemológico pode ser definido como a perspectiva de que o conhecimento (e/ou verdade) é relativo — ao tempo, ao lugar, à sociedade, à cultura, à época histórica, ao esquema ou enquadramento conceitual, ou à convicção ou experiência pessoal — de modo que aquilo que conta como conhecimento depende dos valores de uma ou mais dessas variáveis.

Há uma variedade de ideias diferentes que poderiam ser extraídas da caracterização que Siegel faz do relativismo. Começaremos como algumas formulações simples e incontroversas. Considere as seguintes afirmações:

R1. Aquilo que uma pessoa sabe sabe poderia diferir daquilo que outra pessoa sabe.

R2. Aquilo que uma pessoa sabe num tempo pode diferir daquilo que ela sabe noutro tempo.

R3. Aquilo que geralmente é conhecido numa sociedade poderia diferir daquilo que geralmente conhecido em outra sociedade.

R4. Aquilo que geralmente é conhecido numa sociedade num tempo poderia diferir daquilo que é geralmente conhecido nessa mesma sociedade num tempo diferente.

Ninguém, pelo menos alguém que não seja um cético, discordaria de quaisquer dessas teses.

É preciso clarificar o significado de (R1)-(R4). Considere (R1). Uma coisa que a torna verdadeira é o fato de que cada um de nós tem segredos, coisas sobre nós mesmos que ninguém mais sabe. Como resultado, cada um de nós sabe coisas que os outros não sabem. Não há a implicação aqui de que uma pessoa pode saber algo incompatível com algo que outra sabe. (R1) não implica que eu possa saber que está chovendo num determinado lugar num dado tempo e você saber que não está chovendo nesse lugar no mesmo instante. Diz apenas que podemos saber coisas diferentes. Observações similares se aplicam a (R2)-(R4).

Teses análogas a (R1)-(R4) valem para a crença razoável ou justificada. Diferentes pessoas podem razoavelmente acreditar em coisas diferentes, e crenças amplamente razoáveis numa sociedade poderiam diferir das de outra. Crenças razoáveis podem mudar ao longo do tempo. Ademais, no caso da crença razoável, não é controverso admitir que possa haver conflitos diretos acerca daquilo que é razoavelmente crido. Vimos isso várias vezes nos capítulos anteriores. Os antigos podem ter tido crenças razoáveis sobre o formato da Terra, que agora difere daquilo que razoavelmente acreditamos sobre o mesmo tópico. Nada disso é particularmente controverso. E nada disso põe em xeque qualquer coisa associada à Perspectiva Padrão. Essas não são teses relativistas; e se são, são formas de relativismo inteiramente incontroversas. Presumivelmente, ao caracterizar o relativismo, Siegel tinha algo mais em mente.

RELATIVISMO SÉRIO

Uma tese relativista mais forte e que provavelmente Siegel tinha em mente é uma tese sobre a relatividade dos padrões para o conhecimento ou para a crença razoável. Stephen Stich propõe tal abordagem do relativismo na seguinte passagem:

Uma abordagem daquilo que torna um sistema de raciocínio ou revisão de crença um bom sistema é relativista se é sensível aos fatos sobre o uso que a pessoa ou o grupo faz do sistema. Pode então ser que um sistema seja melhor para uma pessoa ou grupo, enquanto que um sistema completamente diferente seja melhor para outro.

A ideia aqui é a de que não há um único padrão correto de racionalidade ou conhecimento, que se de algum modo algo conta como racional ou conhecimento tal se deverá em um sentido ou outro a um conjunto de padrões que podem variar de um cenário para outro. Podemos formular essa versão do relativismo assim:

R5. O sistema (ou princípios) correto (ou razoável) para formar crenças de uma pessoa ou grupo pode ser diferente do sistema correto (ou razoável) de outros.

O relativismo é geralmente contrastado com o “absolutismo”, de acordo com o qual há apenas um sistema correto, aplicável a todas as pessoas.

Essa apresentação do relativismo é pouco clara; o bastante para tornar a sua avaliação problemática. Um exemplo simples nos ajudará a perceber.

Exemplo 9.1: Os dois professores

A Professora Expert é uma distinta especialista em sua área. Ela dá aulas detalhadas e precisas sobre um tema. Os alunos escutam cuidadosamente o que ela diz e, a menos que algo altamente incomum aconteça, aceitam sua palavra. O Professor Provocativo é também um distinto especialista em sua área, embora em suas aulas ele tipicamente diga coisas absurdas a fim de provocar os estudantes a pensar sobre o tema. Os estudantes escutam cuidadosamente o que ele diz e, a menos que algo bastante incomum aconteça, rejeitam o que ele diz.

Os estudantes nas duas turmas no Exemplo 9.1 seguem princípios de formação de crença diferentes. Um grupo de alunos segue a regra: Acredite no que diz o professor. O outro grupo segue a regra contrária. Seria um erro dizer que uma regra é a correta. Cada grupo de alunos, poderíamos dizer, está usando uma regra ou padrão que é apropriado para as suas circunstâncias.

As diferenças nas regras podem ser em maior escala do que as do Exemplo 9.1. Por exemplo, para várias proposições consideramos a evidência visual como particularmente importante. Assim, se você quer saber se há uma maçã na geladeira, a evidência visual seria mais significante do que a sua memória sobre o que havia lá antes ou do que está na lista próxima à geladeira. Mas aqueles cuja visão é extremamente ruim não darão a mesma prioridade à visão; seguirão regras diferentes. E, como outro exemplo, pessoas que cresceram em sociedades muito diferentes, em que é dado menos valor aos estudos científicos do que nas culturas contemporâneas, seguirão regras diferentes também.

Se as diferenças do tipo ilustradas por esses exemplos são suficientes para tornar (R5) verdadeira, então essa forma de relativismo epistêmico é quase que certamente verdadeira. Esse tipo de relativismo é relativamente incontroverso. As regras que funcionam melhor para uma pessoa ou grupo podem diferir daquelas que funcionam melhor para outro. Se isso é tudo o que o relativismo implica, ele é certamente verdadeiro.

O relativismo do tipo como até agora descrito não ameaça a Perspectiva Padrão. Ele é consistente com as observações feitas em parágrafos precedentes de que sabemos as coisas que a Perspectiva Padrão diz que sabemos e que as fontes de conhecimento que ela identifica são de fato fontes de conhecimento. Ademais, a abordagem fundacionista modesta ao conhecimento e à justificação é também consistente com o relativismo.

Há uma razão, contudo, para se perguntar se as teses relativistas até agora descritas revelam o cerne da Perspectiva Relativista. Uma razão para se duvidar disso é que tudo até agora dito é também consistente com aquilo que poderíamos plausivelmente considerar como uma perspectiva absolutista sobre questões epistêmicas. A menos que o absolutismo seja uma doutrina ingenuamente simplista e completamente insatisfatória, ele também implica que princípios diferentes devem ser aplicados em diferentes circunstâncias. Para discordar daquilo que descrevemos como avaliação relativista do Exemplo 9.1, um absolutista teria de dizer que ou todos os alunos devem sempre acreditar naquilo que seus professores dizem ou que nenhum estudante deveria. É claro, porém, que ninguém diria isso. Na verdade, as diretrizes dos estudantes nas duas turmas parecem se enquadrar num princípio único, mais geral, que diz que se deve acreditar naquilo que for dito por fontes que se tenha razão para confiar. Similarmente, os absolutistas teriam de estar extraordinariamente equivocados em negar que pessoas com capacidades perceptuais diferentes possam razoavelmente tratar a evidência perceptual de maneira diferente. Uma vez mais, é provável que um princípio adequado, mais geral, cubra todos os casos. O relativismo, caso mereça atenção, tem de implicar algo mais do que isso. Tem de implicar algo que os absolutistas queiram negar.

Há uma tese muito mais questionável que alguns filósofos, pelo menos, associam ao relativismo. É difícil apresentá-la precisamente. A seguinte passagem apresenta um enunciado dela:

Para o relativista não há sentido sustentar a ideia de que alguns padrões ou crenças sejam realmente racionais enquanto distintos de terem sido meramente aceitos localmente como tal. Por que ele pensa que não há normas de racionalidade livres de contexto ou supra-culturais, ele não vê a racionalidade e a irracionalidade das crenças constituindo duas classes distintas e qualitativamente diferentes de coisas.

A afirmação central aqui está contida na primeira frase. Ela nos servirá como a próxima apresentação do relativismo:

R6. Nenhuns “padrões ou crenças são realmente racionais enquanto distintos de terem sido localmente aceitos como tal”.

(R6) parece implicar algo muito mais controverso. Ao pensar sobre o Exemplo 9.1, presumimos que era de fato racional da parte dos alunos da turma da Professora Expert acreditar nas coisas que ela lhes dizia e que era de fato racional da parte dos alunos da turma do Professor Provocativo rejeitar o que ele lhes dizia. Além do mais, não é o fato de os estudantes terem de fato essas práticas diferentes que os tornam racionais. Poder-se-ia imaginar alunos teimosos na turma da Professora Expert não aceitando aquilo que ela diz. Eles poderiam ter essa prática crítica e ainda assim (pelo menos de acordo com o tipo de perspectiva aplicada previamente) não serem razoáveis em discordar das afirmações dela. Similarmente, alunos excessivamente ingênuos na turma do Professor Provocativo poderiam ter a prática de aceitar irrazoavelmente os absurdos dito por ele. A nossa discussão prévia pareceu então pressupor que houvesse um fato sobre o que é realmente racional. (R6) nega isso. Aparentemente, os defensores de (R6) pensam que nada há para a racionalidade além de padrões locais. Assim, se um grupo adota um padrão (e.g., acreditar no que o professor diz) e outro grupo em circunstâncias descritivamente idênticas adota um padrão diferente (e.g., negar aquilo que o professor diz), cada grupo é racional.

(R6) é difícil de interpretar e avaliar. Os seus defensores, presumivelmente, pensam que a racionalidade é, em algum sentido, especial e que outras propriedades “realmente” se aplicam ao objetos. É difícil ver por que eles se dariam ao incômodo de dizer que as coisas não são “realmente” racionais se também pensassem que as coisas não são “realmente” quadradas e não “realmente” humanas e não “realmente” composta por átomos. O relativismo sobre essas questões parece completamente absurdo. Para dar outro exemplo, se as pessoas numa sociedade estivessem a sofrer de uma doença rara, seria um erro pensar que não há fato sobre o que realmente está causando a doença, mas apenas crenças locais sobre essa questão. Se um grupo pensa que é um vírus e outro pensa que foi comida contaminada, eles realmente discordam e não podem ambos estarem certos. Uma pergunta razoável, então, é por que os relativistas pensam que a racionalidade é desse modo especial.

Poderíamos ser levados a pensar que nada há que seja “realmente” racional, pois todos que pensam sobre a questão a tratarão de sua própria perspectiva ou contexto. Não há um ponto privilegiado do qual se possa ver as coisas. O que quer que você pense sobre a racionalidade será afetado pelas suas experiências, pela sua cultura, e por outros fatores. Algo assim bem que poderia ser o caso. Podemos fazer de tudo na tentativa de superar nossos vieses, mas veremos então as coisas de alguma perspectiva ou ponto de vista que temos. É díficil, contudo, ver qualquer razão para pensar que se siga disso que não há verdade de fato. Quando ajuizamos sobre algum tópico, incluindo as formas dos objetos ou as causas das doenças, temos de fazê-lo a partir do nosso próprio ponto de vista. Novamente, podemos fazer de tudo para evitar vieses, mas as nossas conclusões sempre serão afetadas pelas nossas perspectivas ou pontos de vista. Não se segue disso que os objetos “realmente” não tenham formas ou que doenças realmente não tenham causas.

Finalmente, é difícil ver por que alguém que defende (R6) não está comprometido com alguma forma de absolutismo no fim das contas. Tal pessoa pensa que tudo o que há para a racionalidade são os padrões locais. Por que não dizer, então, que aquilo que é realmente racional para uma pessoa é o que quer que seja exigido pelo padrões locais. Isto é, (R6) parece ser equivalente a

A1. É sempre realmente racional para uma pessoa se conformar aos padrões de racionalidade locamente aceitos.

(A1) é uma regra altamente implausível: os padrões locais poderiam incorporar regras tolas. Mas isso não é crucial para os presentes propósitos. O que é crucial é que mesmo essa última forma de relativismo parece, sob análise, torna-se um tipo de absolutismo.

A conclusão até agora é a de que há versões de relativismo que são inteiramente incontroversas, tal como (R1-R5). Essas formas de relativismo não são incompatíveis com as coisas ditas por muitos absolutistas, e não são incompatíveis com qualquer coisa contida na Perspectiva Padrão. Outra forma de relativismo é expressa em (R6). Mas essa versão de relativismo é um tipo implausível de absolutismo. Não há dúvidas que outras versões de relativismo poderiam ser desenvolvidas, e é ainda possível que uma versão melhor seja desenvolvida.

Nada disso deveria ser tomado como anulando as observações da diversidade cognitiva que levou alguns à Perspectiva Relativista. As pessoas são diversas, e seria um erro negar tal coisa ou supor de maneira arrogante a superioridade da própria perspectiva. Contudo, é difícil extrair qualquer doutrina epistemológica significante dessas observações, pelo menos alguma doutrina que mine a Perspectiva Padrão.

DESACORDOS RAZOÁVEIS

Não é incomum que uma discussão sobre um assunto controverso termine com uma declaração de que pessoas razoáveis podem discordar sobre a questão. Os defensores da Perspectiva Relativista não hesitam em aceitar essa possibilidade. Essa observação é feita em debates políticos, religiosos, filosóficos e às vezes científicos. Talvez seja de se esperar que isso propicie um desacordo respeitoso e uma maior tolerância a perspectivas opostas. Nada do que se segue visa minimizar o valor de ser respeitoso e tolerante. Ao invés, a questão a ser tratada diz respeito a quanto é possível para pessoas razoáveis discordarem. Talvez os relativistas e os absolutistas difiram sobre o quanto de desacordo razoável possa haver.

Casos incontroversos de desacordo razoáveis

Será melhor começar por clarificar a questão. Isso pode ser feito pela identificação e separação de dois tipos de situação que poderiam envolver pessoas razoáveis (ou racionais) discordando mas que estão fora do ponto em discussão.

Primeiro, poder-se-ia pensar que uma pessoa razoável é aquela que tem uma tendência geral a ter crenças razoáveis. Assim como uma pessoa honesta poderia contar uma mentira infrequente, a pessoa razoável poderia ter uma crença irrazoável ocasional. Quando tem tal crença, a pessoa razoável discordaria de outra pessoa razoável que dispõe de evidência similar mas que não está sofrendo um lapso de racionalidade. Claramente não é isso que a observação “pessoas razoáveis podem discordar” pretende referir. Antes, a afirmação é a de que ambos os pontos de vista são razoáveis nas mesmas circunstâncias.

Uma segunda maneira pela qual é incontroverso que pessoas razoáveis possam discordar depende centralmente daquilo que conta como um desacordo. Suponha que eu goste de sorvete de baunilha e você prefira o de chocolate. Num sentido, discordamos sobre algo. Contudo, nada há de irrazoável sobre ambas as preferências. Pessoas perfeitamente razoáveis podem ter desacordos não-intelectuais como esse. É claro que nesse tipo de caso não há qualquer proposição particular tal que uma pessoa pense que seja verdadeira e a outra pense que seja falsa. E é a existência de desacordos razoáveis sobre o valor de verdade de uma proposição que está sob discussão aqui.

Esses dois exemplos sugerem que o ponto relevante na dúvida quanto a pessoas razoáveis poderem discordar é perguntar se pode ocorrer que uma pessoa acredite numa proposição e outra acredite e em sua negação e ainda assim ambas sejam razoáveis em suas crenças. Novamente, porém, é fácil ver que a resposta a essa pergunta é incontroversamente afirmativa. Exemplos como os das crenças dos antigos e modernos acerca do formato da terra estabelecem o ponto. Contudo, o tipo de caso que geralmente provoca a observação de que pessoas razoáveis podem discordar difere desse. Suponhamos que as crenças dos antigos estivessem baseadas na melhor informação observacional e teórica disponível a eles. Isso é o que torna a crença deles razoável. Estamos numa posição claramente superior a deles no que diz respeito a essa questão. Temos observações e informação que vão além das que eles tinham. Estamos cientes, pelo menos a grosso modo, da informação que eles tinham e muito mais. Isso nos permite dizer, corretamente, que eles eram razoáveis em sua crença, embora estivessem errados, e que a nossa crença na proposição concorrente é também razoável.

A relação entre os antigos e nós sobre essas questões é, num sentido importante, assimétrica: sabemos sobre eles, mas eles não sabiam sobre nós. Não há conversa na qual eles ouvissem a nossa perspectiva, nós ouvíssemos a deles, e então ambos razoavelmente compreendam (ou lidem como) as perspectivas diferentes. Em contraste, o tipo de situação vislumbrada desde o início desta seção foi a de que duas pessoas travam uma discussão, escutam e apresentam das várias perspectivas e então chegam à conclusão de que pessoas racionais podem discordar sobre o assunto em pauta. Nesse caso, há um compartilhamento de informação embora conclusões diferentes sejam atingidas. Esse é um caso mais intrigante. Quando isso acontece, podem ambas as partes serem razoáveis?

Mantendo crenças à luz do desacordo

Podemos apresentar nossa questão perguntando se é razoável a você manter suas crenças quando você sabe que há outras pessoas tão inteligentes quanto você que têm crenças conflitantes com as suas. A questão é ainda mais desafiadora quando diz respeito a crenças que despertam paixão entre as pessoas, tais como suas crenças morais ou religiosas. Será razoável manter as suas crenças mesmo sabendo que outras pessoas tão inteligentes e bem informadas quanto você acreditam em coisas em claro contraste com aquilo que você acredita? Pode você de maneira sensata pensar que as suas próprias crenças são razoáveis ao mesmo tempo que as crenças daqueles que discordam de você são também razoáveis? A ideia aqui é que não há assimetria, ou pelo menos nenhuma assimetria óbvia, como no caso dos antigos e nós. Nesses casos, você e aqueles com os quais discorda sabem tudo sobre as perspectivas um do outro. Dizer que as suas próprias crenças são razoáveis ao mesmo tempo em que as crenças concorrentes são também razoáveis é dizer (assumindo uma perspectiva evidencialista) três coisas:

a. Você tem boas razões para as suas crenças.

b. Eles têm boas razões para as suas crenças concorrentes.

c. Você está correto e eles errados.

Será essa combinação de crenças defensável?

Você poderia pensar que na situação em discussão você não teria de aceitar o elemento (c). Mas se há um desacordo real, então há algo que você acredita e os outros negam. E se você acredita que p e sabe que alguém acredita que ¬p, então você pensa que a outra pessoa está errada. Você poderia não querer colocar as coisas assim tão direta, mas isso é o que a consistência exige que você pense. Se você pensa que eles poderiam estar corretos ao mesmo tempo que você, então você pensa que não há desacordo de todo em todo. Quando há desacordo real, o elemento (c) está presente.

Algumas pessoas têm tentado interpretar os aparentes desacordos sobre questões importantes de modo que não os torne desacordos de fato. Quer dizer, eles têm tentado interpretar algumas questões de modo que (c) não se aplique. Por exemplo, algumas pessoas têm tentado interpretar as aparentes diferenças sobre questões religiosas como algo que não um desacordo genuíno. Poder-se-ia dizer que perspectivas religiosas aparentemente conflitantes são na verdade casos em que as pessoas usam uma linguagem diferente para dizer essencialmente a mesma coisa. Ou considerar a conversa religiosa não como descrevendo fatos mas, ao invés, como sendo um modo de expressar a lealdade a determinado modo de vida. Não entraremos nessa disputa sobre a natureza da linguagem religiosa. A nossa questão é sobre desacordos genuínos. Se os desacordos religiosos são genuínos, então o que se dirá abaixo se aplicará a eles.

A nossa questão, então, é se uma pessoa pode razoavelmente aceitar (a)-(c) no caso de um desacordo genuíno sobre alguma questão de fato. Talvez esse seja um ponto no qual relativistas e absolutistas discordem. Em outras palavras, talvez os defensores da Perspectiva Relativista aceitem, e os absolutista neguem, um princípio tal como

R7. É possível para uma pessoa estar justificada em acreditar que p ao mesmo tempo em que também está justificada em acreditar que outra pessoa está justificada em acreditar que ¬p.

(R7) parece ser aquilo que a pessoa que termina a discussão com a “pessoa razoável que discorda” tem em mente. Ela diz “Sou razoável em minha crença, mas você é razoável em sua crença concorrente”.

É claro, contudo, que os absolutistas não teriam problemas em aceitar (R7). Um primeiro passo para vermos por que é considerar o seguinte exemplo:

Exemplo 9.2: Tratamentos Efetivos

O dr. J faz um estudo cuidadoso para examinar a efetividade das drogas X, Y e Z para o tratamento de alguma doença. O estudo indica que X funiciona melhor. O dr. J não tem outra informação relevante quanto à preferência aos três medicamentos. Enquanto isso, a drª. K fez um estudo similar que indicou que Y funciona melhor. Nenhum pesquisador sabe algo acerca de outros resultados ou mesmo da existência de outro estudo. Nenhum pesquisador é de modo algum negligente em não saber sobre o estudo um do outro. Cada um tem boa razão para pensar que o seu estudo efetivamente conduzido e concluído.

A essa altura, podemos aceitar cada uma das seguintes afirmações:

  1. O dr. J está razoavelmente bem justificado em pensar que X funciona bem.
  2. A drª. K está razoavelmente bem justificado em pensar que Y funciona bem.

Na presente forma, esse exemplo não fornece apoio a (R7). Para estabelecer (R7) não é suficiente que 2 seja verdadeira. É também necessário que o dr. J esteja justificado em pensar que (2) é verdadeira.

Suponha que adicionemos ao caso que o dr. J fica a saber dos resultados da drª. K. Se pudermos também adicionar fatores ao caso que tornem o dr. J justificado em pensar que está correto e que a drª. K está errada, então teremos um exemplo que estabelece (R7). Não é difícil fazê-lo. Suponha que o dr. J também saiba sobre as falhas no estudo da drª. K, falhas que ela não tinha como saber e que não envolvem erros de raciocínio. O fato de a drª. K não ter como saber dessas falhas e não ter cometido erros de raciocínio torna verdadeiro que ela está justificada em sua crença. O fato de o dr. J ter descoberto essas falhas mostra que ele tem razão para desconsiderar os resultados da dr. K e acreditar que ele está correto e ela errada. Ele está ainda justificado em pensar que X funciona melhor. Temos então um caso para estabelecer (R7). O exemplo depende do fato de que o dr. J sabe mais do que a drª. K sabe. Ele é capaz de explicar o resultados conflitantes. Assim, você pode ter boas razões para a sua crença, saber que outras pessoas têm boas razões para a crença concorrente, e ainda assim estar justificado em manter a sua própria crença.

Acontece, então, de a tese relativista (R7) ser verdadeira. Mas isso de modo algum estabelece aquilo que os absolutistas quereriam negar. Os princípio de raciocínio poderiam ser tão absolutos quanto poderíamos imaginar, e o exemplo recém descrito estabeleceria (R7).

Como até agora descrito, o exemplo do dr. J e da drª. K involve uma assimetria. O dr. J sabe mais do que a drª. K sobre a situação. Nesse aspecto, é como o exemplo dos antigos e nós sobre o formato da terra. Mas podemos modificar o exemplo a fim de eliminar essa característica. Suponha que os dois médicos trocam toda a informação sobre os dois experimentos. Assim, ele têm exatamente a mesma evidência sobre os resultados da pesquisa. E suponha que eles mantenham suas crenças originais. O dr. J ainda pensa que X funciona melhor e a drª. K ainda pensa que Y é que funciona melhor. Talvez os relativistas queiram dizer que cada um deles estaria justificado e que ambos estariam justificados em acreditar que o outro está justificado. Eles poderiam discordar razoavelmente sobre o melhor medicamento. Se os relativistas dizem isso, eles estão a defender um princípio como o seguinte

R8. É possível para uma pessoa estar justificada em acreditar que p, e justificada em acreditar que outras pessoas estejam justificadas em acreditar que ¬p, e não ter qualquer razão para acreditar que suas próprias razões (ou métodos) sejam superiores aos das outras pessoas.

Aceitar (R8) é aceitar uma tese significante. Talvez seja isso que os defensores da possibilidade de desacordos razoáveis têm em mente. Pois (R8) é uma maneira de dizer “Tenho a minha crença, você tem a sua, ambos estamos justificados, e as nossas situações epistêmicas são comparáveis”. Isso permite o desacordo sem a suposição de uma posição superior por parte de ambos os descordantes.

Os absolutistas negarão (R8). Os evidencialistas parecem estar comprometidos com a perspectiva de que os dois médicos em nosso exemplo não possam estar justificados em acreditar em coisas diferentes com base na mesma evidência. Eles negarão (R8). Assim, talvez seja (R8) o ponto de contenda entre os relativistas e os absolutistas.

Há uma boa razão para favorecer o lado absolutista da disputa. Pois para que cada um dos médicos mantenha a sua crença em sua situação é preciso que deem um status especial a seu próprio estudo sem qualquer boa razão para isso. E é uma falha tratar casos iguais desigualmente. Eles deveriam suspender seu juízo sobre qual droga é mais efetiva. Não há razão para aceitar a tese relativista de que um deles está justificado em manter a sua crença original. É melhor rejeitar (R8).

Uma ideia relacionada é a seguinte. Às vezes você tem uma crença particular e sabe que outras pessoas, tão inteligentes quanto você, têm crenças conflitantes com a sua. Pode ser confortante e amigável pensar que eles estão justificados em suas crenças e você nas suas. Mas se você genuína e razoavelmente pensa que eles estão justificados em suas crenças, então, se você é razoável em manter a sua crença, você precisa de alguma razão para pensar que, por uma razão ou outra, eles têm uma crença justificada falsa. Isto é, você precisa de alguma informação comparável àquela que temos no caso dos antigos e nós. Na falta dessa informação, você não está justificado a manter a sua crença.

Esse é um resultado intrigante. Muitas pessoas estão inclinadas a pensar que seus pontos de vista filosóficos, políticos, religiosos e assim por diante são razoáveis, e que aqueles que discordam deles são também razoáveis. Elas querem ser tolerantes e inclusivas. Elas querem manter os seus próprios pontos de vista, mas conceber que aqueles que diferem delas têm também boas razões. O resultado da nossa discussão é que, em casos em que toda a evidência a favor de ambos os lados é compartilhada, essa combinação de perspectivas não é razoável. Você não pode pensar razoavelmente que as suas crenças são justificadas por aquelas evidências e que as crenças concorrentes são também justificadas pela mesma evidência. E mais, ainda que você não tenha compartilhado toda a evidência, uma vez que você conceda que os outros têm boas razões para seus pontos de vista, você tem de ter uma boa razão para pensar que eles estão errados, caso você queira ser razoável em manter as suas crenças originais. Os desacordos razoáveis são mais difíceis de obter do que poderiam pensar os defensores de (R8).

Duas objeções

O argumento da seção anterior nega que possa haver desacordos razoáveis do tipo que os relativistas descrevem. Essa seção examina duas réplicas.

Atitudes diferentes perante o risco

Exemplo 9.3: Corajoso e Cauteloso

Corajoso e Cauteloso examinam a evidência para a proposição, P, e concluem que a evidência a apoia ligeiramente. Corajoso conclui que é uma evidência boa o bastante para acreditar que P e acredita. Cauteloso conclui que acreditar com base nessa quantidade de evidência é bastante arriscado. Cauteloso não acredita que p. Mas cada um deles reconhece a legitimidade das diretrizes do outro. Eles decidem que ambos têm uma atitude razoável frente a p.

Se Corajoso e Cauteloso estão corretos em pensar que são razoáveis, então parece que temos um caso de desacordo razoável do tipo que estávamos procurando. Esse exemplo, caso esteja correta, mostra que não há uma única atitude razoável a ser tomada frente a uma proposição, mesmo tendo um corpo fixo de evidência. Isso parece minar o absolutismo.

O tipo de desacordo envolvido no Exemplo 9.3 difere dos apresentados anteriormente. Esse não é um caso em que as pessoas discordam realmente sobre p; isto é, não é um caso em que alguém acredita que p e o outro desacredita. Ao invés, um acredita e o outro apenas suspende o juízo. E não há modo de modificar o exemplo de modo que Cauteloso viesse a acreditar que ¬p com base na evidência, a menos que eles tivessem um desacordo ainda mais substancial sobre a natureza dessa evidência. Assim, ainda que correto, esse não é um caso de desacordo razoável do tipo que estamos procurando.

Poderia mesmo ser que o caso apenas se dá porque temos falado sobre a crença como se ela fosse uma atitude “tudo ou nada”. Mas talvez devêssemos distinguir entre graus de crença, ou que devêssemos reconhecer diferenças entre a aceitação cautelosa, a convicção plena e uma gama de atitudes entre elas. Defensavelmente, então, alguma forma fraca de crença está justificada no exemplo em consideração. Desse ponto de vista, a suspensão de juízo é justificada somente quando a evidência relacionada a uma proposição é de fato contra-balanceada — quando ele nem mesmo modestamente apoia a proposição. Se for esse o caso, então atitudes diferentes frente ao risco não parecem justificar sequer o mais modesto tipo de desacordo envolvido no Exemplo 9.3.

Exemplos como 9.3, portanto, não apoiam qualquer abandono significativo da perspectiva absolutista. Talvez eles mostrem que haja espaço para algumas diferenças razoáveis em quanta evidência é exigida para razoavelmente se formar uma crença. Mas isso nem chega perto de mostrar que possa haver desacordos razoáveis do tipo vislumbrados por (R8).

Quando escolhas são exigidas

Exemplo 9.4:  A bifurcação na estrada

Canhoto e Destro estão dirigindo em carros separados rumo a um encontro importante. Eles dirigem em horários diferentes, de modo que não vêem um ao outro. Há uma bifurcação na estrada. Cada um deles tem de pegar uma das bifurcações. A sinalização não menciona a bifurcação, eles não têm qualquer mapa ou telefone celular, e não há ninguém por perto a quem se possa perguntar. Voltar não é uma opção. Eles têm de fazer uma escolha. Canhoto escolhe o caminho da esquerda. Destro o da direita. Mais tarde, ao ouvir o que aconteceu, Canhoto diz que Destro fez uma escolha razoável, embora ele, Canhoto, tenha também sido razoável. Nenhum deles pensa que a escolha do outro é melhor.

Canhoto e Destro tinham exatamente a mesma informação quando tomaram suas decisões. Tomaram decisões diferentes, e, pelo menos num instante posterior, ambos sabiam que o outro tinha tomado uma decisão razoável. Isso mostra que pessoas razoáveis podem discordar, mesmo quando toda a evidência é compartilhada. Isso pode parecer dar apoia a (R8) e refutar o absolutismo.

Ao pensar sobre exemplos como esse, é importante separar questões sobre crença de questões sobre ação. Podemos conceder que é razoável pegar o caminho da esquerda e que é razoável pegar o caminho da direita. Alguém tem de tomar um caminho — estamos supondo que não há outra opção — e não há bases para se concluir que um caminho é melhor que o outro. Assim, tomar qualquer um dos dois é aceitável. Mas isso não mostra que o desacordo razoável do tipo caracterizado anteriormente seja possível. E nenhuma objeção ao absolutismo sobre a crença razoável levantada por esse exemplo. É razoável pegar o caminho da esquerda. É igualmente razoável pegar o caminho da direita. Mas não é razoável acreditar que o caminho da esquerda seja a melhor rota. Nem é razoável acreditar que o caminho da direita seja o melhor para se pegar. A atitude justificada frente a essas proposições  é a suspensão de juízo. Uma pessoa razoável pensaria, nessa situação, “Não tenho ideia de qual é o melhor. Mas seguirei este”. A escolha será arbitrária.

A suspensão de juízo está também disponível no caso da crença. Em alguns casos de ação, a opção de nada fazer — que é em algumas formas o análogo da suspensão de juízo  — não não está disponível ou é claramente uma opção inferior. Mas em todos os tipos de casos sob consideração aqui, a suspensão de juízo em relação às proposições controversas é no mínimo um candidato a uma atitude razoável. E pode muito bem ser que em grande parte dos casos nos quais as pessoas pensam que pessoas razoáveis podem discordar, o que é de fato verdadeiro é que pessoas razoáveis suspenderão o juízo acerca do tópico. E isso pode ser o caso mesmo quando alguma ação correlata tenha de ser executada. O dr. J, na última versão do exemplo, caso fosse razoável, suspenderia o juízo sobre qual droga é a melhor. E ele suspenderia o juízo ainda que tivesse dado alguma medicação a um paciente precisando de cura.

Isso sugere um ponto importante que pode ser aplicar à casos reais nos quais as pessoas querem dizer que pessoas razoáveis podem discordar. Se você pensa que ambas as conclusões são igualmente bem apoiadas pela evidência, então a suspensão de juízo é a atitude racional a ser tomada. Isso pode ser desapontador quando parece melhor ter a crença. As crenças em questão podem até fazer uma diferença real à sua vida. Contudo, a conclusão da presente linha de raciocínio é que em tais casos, a suspensão de juízo é a atitude epistemicamente racional. Ao mesmo tempo, pode ser melhor agir em tais casos, como mostra o exemplo da bifurcação da estrada.

Seguir consistentemente princípios evidencialistas, então, pode exigir uma postura mais modesta do que alguns gostariam. A suspensão de juízo pode ser a atitude razoável frente a muitas questões difíceis.

CONCLUSÃO

Este capítulo examinou a Perspectiva Relativista e suas implicações. Mostrou-se difícil formular com exatidão a posição relativista. Algumas versões da doutrina, tais como (R1)-(R4), dizem meramente que há diferenças nas coisas conhecidas por diferentes pessoas ou grupos. Tais versões de relativismo são inteiramente inócuas. Outras versões, tal como (R5), dizem que há diferenças nos princípios de raciocínio que as pessoas podem razoavelmente usar. Adequadamente interpretado, isso é verdadeiro e dificilmente controverso.

Outras versões de relativismo, como (R6), dizem que não há verdades reais sobre o que é razoável; há meramente padrões locais variantes. É difícil entender exatamente o que isso significa, exceto talvez que o único padrão apropriado a ser seguido é aquele que os costumes locais ditam. Isso equivale a uma tese absolutista completamente implausível. Nada há, portanto, em tais doutrinas relativistas que seja plausível e ao mesmo tempo controverso.

Outra ideia associada à Perspectiva Relativista é sugerido pela expressão comum “Pessoas razoáveis podem discordar”. Essa expressão pode ser interpretada de várias formas, mas a de maior interesse se aplica a situações nas quais duas pessoas compartilham toda a informação relevante e chegam a conclusões diferentes sobre o mesmo tópico. Cada uma delas diz ser razoável em tiras suas próprias conclusões, mas talvez na vontade de ser respeitoso e tolerante, reconhece a racionalidade do outro. (R8) formula o princípio relativista ao longo dessas linhas.

Se (R8) é verdadeira, então duas pessoas numa conversa podem compartilhar todas a evidência e razoavelmente chegar a conclusões diferentes, com pleno conhecimento da posição do outro. Isso levaria a uma violação dos padrões evidencialistas. Embora isso não conflite diretamente com a Perspectiva Padrão, conflita com o absolutismo implícito por toda a discussão . A conclusão traçada aqui é que (R8) não é verdadeira, que não há casos do tipo que ele descreve. Nas situações que achamos mais plausíveis de casos de desacordo razoável, a suspensão de juízo é a atitude razoável a ser tomada frente à proposição em disputa.

A Perspectiva Relativista apresenta um conjunto de questões interessante e intrigantes. A existência da diversidade cognitiva pode fornecer uma base para a confiança reduzida em algumas coisas que algumas pessoas acreditam. Mas nada há nas considerações avançadas neste capítulo que lance dúvida sobre a Perspectiva Padrão.

 

Capítulo 9 de Epistemology; Prentice Hall, 2003.

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