O relógio e o relojoeiro, por William Paley

Tradução de L. H. Marques Segundo

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Apresentação do argumento

Suponha que, ao cruzar um deserto, tropeço numa pedra e, perguntado como aquela pedra foi parar ali, respondo, por falta de evidência em contrário, que ela sempre esteve ali; talvez não seja muito fácil mostrar a absurdidade dessa resposta. Mas suponha que encontro um relógio sobre o chão; inquirido sobre como o relógio apareceu naquele lugar, dificilmente eu cogitaria a resposta anteriormente dada – a de que, tanto quanto sei, o relógio sempre esteve ali. Mas por que essa resposta não serve para o caso do relógio assim como serviu para o caso da pedra? Por que ela não é admissível no segundo caso embora o seja no primeiro? Por esta razão, e não por outra; viz., que, quando inspecionamos o relógio, percebemos (o que não teríamos descoberto no caso da pedra) que as suas várias partes foram dispostas e montadas para um propósito, e.g., foram formadas e ajustadas para produzir movimento, e esse movimento regulado de tal modo a mostrar a hora do dia; se as diferentes partes tivessem sido configuradas diferentemente, se tivessem um tamanho diferente, se tivessem sido dispostas de alguma outra maneira, ou numa ordem diferente, então ou nenhum movimento teria sido conferido à maquina, ou tal movimento não teria a serventia que tem agora. A soma de poucas das mais simples dessas partes e de suas funções tende a um resultado: – Vemos um tambor contendo uma mola que, devido ao seu relaxamento, circunda o tambor. Observamos então uma corrente flexível (artificialmente feita para a flexão) comunicar a ação da mola do tambor ao fuso. Vemos depois uma série de rodas, cujos dentes se encaixam uns nos outros, conduzindo o movimento do fuso ao balanço, e do balanço ao ponteiro; e, ao mesmo tempo, devido ao tamanho e forma dessas rodas, regular o movimento fazendo com que o indicador, através de uma progressão uniforme e rítmica, percorra um dado espaço num dado tempo. Temos de notar que as rodas são feitas de latão para evitar ferrugem; as molas, de aço, não havendo outro metal tão elástico; por cima do relógio é colocado um vidro, material empregado em nenhuma outra parte do relógio, mas que por sua transparência nos permite ver as horas sem que precisemos remover a tampa. Ao se observar tal mecanismo (o que requer na verdade um exame do instrumento, e talvez algum conhecimento prévio do assunto para entendê-lo; mas, como já dito, já observado e conhecido), pensamos que é inevitável a inferência de que o relógio tem de ter tido um fabricante; que tem de ter existido, em algum momento e em algum lugar, um artífice ou artífices que o moldaram para o propósito que ele efetivamente atende; alguém que compreendia a sua construção e que planejou o seu uso.

I. Não penso que o fato de nunca termos visto um relógio sendo feito enfraqueça a conclusão; e nem de nunca termos conhecido um artista capaz de fazer um; e nem que fossemos completamente incapazes de fazer tal artesanato, ou de entender de que forma ele foi feito; e nem que tudo isso não passasse de alguma relíquia rara do mundo antigo, de uma humanidade perdida, ou da mais curiosa produção da moderna manufatura. Será que um homem em um milhão sabe como armações ovais são torneadas? A ignorância desse tipo exalta a nossa opinião quanto à habilidade do artista invisível e desconhecido, caso ele seja invisível e desconhecido, mas não levanta dúvidas quanto à existência e a agência de tal artista em algum instante anterior, e em algum lugar. E nem penso que altere a inferência de todo em todo, seja a questão levantada a um agente humano, ou a um agente de uma espécie diferente, ou a um agente que possua, em alguma medida, uma natureza diferente.

II. Segundo, o fato de o relógio às vezes estar errado, ou de raras vezes estar certo, não invalidaria a nossa conclusão. O propósito da maquinaria, do desígnio e do projetista poderia ser evidente independentemente do modo como dermos conta da irregularidade do movimento, ou ainda que não conseguíssemos dar conta. Não é necessário que uma máquina seja perfeita para mostrarmos que ela foi feita por desígnio; ainda menos necessário seria se a única pergunta fosse se ela foi feito por qualquer desígnio.

III. Em terceiro, o argumento não se tornaria incerto caso houvesse algumas poucas partes do relógio que não pudéssemos ou ainda não tivéssemos descoberto de que maneira elas contribuíram para o funcionamento geral; ou mesmo que houvesse algumas partes que não pudéssemos determinar se deram qualquer contribuição para o funcionamento. Pois, no que diz respeito ao primeiro caso, se por perda, desarranjo ou deterioração das partes em questão percebêssemos que o relógio de fato estivesse parado, desarranjado ou atrasado, não restaria dúvida quanto à utilidade ou intenção dessas partes, embora pudéssemos ser incapazes de investigar o modo no qual, ou em relação ao qual, ou a conexão pela qual o efeito último tivesse dependido de sua ação ou auxílio; e quanto mais complexa uma máquina for, mais provável é que tal obscuridade apareça. Já quanto ao segundo caso, a saber, o de que haveria partes que poderiam ser dispensadas sem qualquer prejuízo ao movimento do relógio, o que poderia ter sido provado experimentalmente, tais partes supérfluas não anulariam o raciocínio que estabelecemos sobre as outras partes, ainda que estivéssemos seguros de tal. A indicação de engenho, no que diz respeito a essas últimas partes, permaneceria como antes.

IV. Em quarto lugar, nenhum homem sensato pensaria que a existência do relógio e a sua maquinaria fosse explicada dizendo-se que essa é uma das combinações possíveis das formas materiais; que qualquer coisa que ele tivesse achado no lugar do relógio teria uma configuração interna ou outra; e que tal configuração poderia ser a estrutura exibida atualmente, viz., o mecanismo de um relógio, assim como poderia ser uma estrutura diferente.

V. Em quinto lugar, se lhe dissessem que há nas coisas um princípio de ordem que dispôs as partes do relógio em sua forma atual, a sua curiosidade não teria sido satisfeita. Ele nunca vira um relógio feito pelo princípio de ordem; além de não poder sequer formar uma ideia do que seja um princípio de ordem distinto da inteligência do relojoeiro.

VI. Sexto, ele se surpreenderia se escutasse que o mecanismo do relógio não é uma prova de engenho, mas apenas um motivo para induzir a mente a pensar assim.

VII. E não ficaria menos surpreso se informado que o relógio em suas mãos é nada mais do que o resultado das leis da natureza metálica. É uma perversão linguística atribuir a uma lei o papel de causa eficiente, operativa, de algo. Uma lei pressupõe um agente; pois ela é apenas o modo de acordo com o qual o agente procede; ela pressupõe um poder; pois ela é a ordem de acordo com a qual esse poder age. Sem esse agente, e sem esse poder, que são distintos um do outro, a lei nada faria, nada seria. A expressão “a lei da natureza metálica” pode soar estranha e irritante ao ouvido filosófico; mas ela parece tão justificável quanto outras mais familiares a ele, como por exemplo, “a lei da natureza vegetal”, “a lei da natureza animal”, ou decerto, “lei da  natureza” em geral quando atribuída como a causa dos fenômenos em exclusão da agência e poder, ou quando colocada no lugar destes.

VIII. Por último, o nosso observador não se desviaria de sua conclusão, ou da confiança em sua verdade, se lhe dissessem que ele nada sabe sobre a questão. Ele sabe o bastante para o seu argumento: ele sabe da utilidade do fim: ele sabe da subserviência e adaptação dos meios aos fins. Sendo esses pontos conhecidos, a sua ignorância e a sua dúvida quanto a outros não afeta a certeza de seu raciocínio. A consciência de que se sabe pouco não gera desconfiança acerca daquilo que se sabe. […]

Aplicação do argumento

Cada indicação de engenho, cada manifestação de desígnio existente no relógio existe também nas máquinas da natureza; a diferença é que a natureza, sendo maior, as possui num grau que excede todo e qualquer cômputo. Digo que os engenhos da natureza superam em complexidade, sutileza e curiosidade de mecanismo os engenhos da arte; e mais, na medida do possível, vão além em quantidade e variedade; contudo, em diversos casos, não são menos evidentemente mecânicos, nem menos evidentemente engenhos, nem menos evidentemente adaptados a seus fins, ou apropriados a sua função do que grande parte das produções perfeitas da engenhosidade humana.

 

Retirado de W. Paley (1802) Natural Theology, OUP 2006.

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